"Com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, entretanto, ele joga." (Schiller)

Saber sensível

A “educação estética” pensada pelo Núcleo das Linguagens atua basicamente em duas concepções do que é “estético”. Esta palavra tem raiz grega (aisthesis) e remete para o que apreendemos pelos sentidos, isto é, envia-nos à ideia de sensação. A primeira concepção teórica do Núcleo relaciona-se com a Estética nessa acepção originária. Vejamos o que nos diz Duarte Júnior (2000, p.72):

“Tal conhecimento, tendo (epistemologicamente) negado desde os seus primórdios o acesso sensível do ser humano ao mundo, veio num crescendo, desumanizando o nosso planeta e as nossas relações sociais ao generalizar-se de modo indiscriminado. Portanto é oportuno identificar a crise da modernidade com a crise desse tipo de conhecimento que a engendrou e a ela deu sustentação, em detrimento de outros tipos de saberes, em especial o saber sensível.”
O conhecimento que negou o “acesso sensível do ser humano ao mundo” é, segundo o autor, a ciência moderna galileana. A posição de Duarte Júnior não é exatamente uma crítica à ciência moderna, porque o autor expõe o resultado do abuso da aplicação da epistemologia moderna. O more geometrico dos modernos faz frente ao aristotelismo da Escolástica medieval e reinventa a maneira de fazer ciência[1], mas a tradição filosófica que então se inicia crê que o método matemático seja a solução para construir todo o saber, diante do sucesso da aplicação geométrica à ciência natural. Segundo Duarte Júnior, essa tradição leva-nos a uma “anestesia”, isto é, a uma valorização do abstrato e das suas possibilidades técnicas em detrimento de uma desconfiança e de um desprendimento dos sentidos.
Essa proposta de inspiração moderna faz uma assepsia da realidade e acaba por fragmentá-la. As palavras de Merleau-Ponty ilustram esta tese:
“Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente esta experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.” (MERLEAU-PONTY apud TRIVIÑOS, 2002: 43)
O autor chama atenção para o fundamento sensível da própria ciência como tentativa de conhecer a realidade. Conferir sentido à própria ciência é “voltar às coisas mesmas” – eis o adágio da fenomenologia husserliana.
Esse panorama em relação aos sentidos envia-nos para a necessidade de opor à “anestesia” uma educação sensível, isto é, uma educação que desperte para as vivências e reflita sobre a própria apreensão imediata do mundo. A educação sensível não prescinde do abstrato, porém procura valorizar o aspecto sensório da realidade.
A segunda concepção teórica – já tradicional – endossada pelo Núcleo das Linguagens é a da educação artística. É fácil perceber que não há descontinuidade entre a educação sensível e a educação artística, embora não sejam propostas idênticas. A arte, bem como a ciência, tem seu aspecto sensório. Porém, cremos que a apreensão do belo não se esgota na sensualidade e seja, tanto quanto a educação sensível, uma maneira de fazer frente à fragmentação do conhecimento. Para tanto, retomamos a proposta que Schiller (p. 73-75, 2002) apresenta na Carta XIV de sua Educação Estética do Homem, em que sustenta a tese de que o belo seja a “forma viva”. Isto quer dizer que o objeto belo é capaz de expor a universalidade formal característica do saber abstrato em um corpo “vivo” de matéria. O impulso lúdico – ou seja, o impulso humano que não se atém aos propósitos exigidos pela razão e nem é o puro movimento material indeterminado – é o impulso que conduz o homem à liberdade, tese que Schiller defende mais à frente:
“Onde quer que o encontremos, esse tratamento espirituoso e esteticamente livre da realidade comum é o sinal de uma alma nobre. Deve ser dita nobre a alma que tenha o dom de tornar infinitos, pelo modo de tratamento, mesmo o objeto mais mesquinho e a mais limitada empresa. É nobre toda a forma que imprime o selo da autonomia àquilo que, por natureza, apenas serve (é mero meio). Um espírito nobre não se basta com ser livre; precisa por em liberdade todo o mais à sua volta, mesmo o inerte.” (SCHILLER: p. 120, Carta XXIII, 2002)
Mesmo que o Estado como racionalidade plena esmague o sujeito – como num regime totalitário, que embora seja um exemplo anacrônico em contexto schilleriano, é bastante ilustrativo – o espírito capaz de reconhecer a beleza pode salvaguardar sua humanidade e sua autonomia. O belo é capaz de conferir autonomia e dignidade até mesmo às coisas, que não são vistas como meios quando apreendidas como belas – tornam-se fins. Para Schiller, as exigências morais da razão kantiana são importantes e livres, mas há outra forma de vivenciar a liberdade sem abandonar completamente o concreto: o belo. A liberdade estética é a edificadora do mundo da felicidade, conceito este subjugado pela moral santa kantiana – a que Schiller chama “demoníaca”. Porém, vejamos o alerta que o próprio autor nos confere:
“Entretanto, dissolvido em entendimento puro e pura intuição, será o espírito capaz de trocar as severas algemas da lógica pelo livre andamento da força poética, de apreender a individualidade das coisas com um sentido fiel e casto?” (SCHILLER: p. 40, Carta VI, 2002)
Este trecho é uma boa síntese, a nosso ver, do desafio de uma educação estética. Em termos contemporâneos, trata-se de fazer frente ao predomínio da razão instrumental, calculadora de meios. É a mesma opinião de Habermas:
“Schiller, valendo-se dos conceitos da filosofia kantiana, desenvolve a análise da modernidade cindida e projeta uma utopia estética que atribui à arte um papel decididamente social e revolucionário.” (HABERMAS: 2002, p. 64)
A educação estética tem potencial transformador quando aplicada à edificação do Estado pela beleza, tal como entendida por Schiller. A beleza schilleriana não se contenta com a universalidade abstrata da razão e anseia pela “forma viva”. Só um Estado real que enseje a liberdade e a felicidade é belo – e esse Estado utópico é o anseio do “homem nobre”, que aspira à beleza.
Talvez a transformação social apontada pelo plano de Schiller seja mesmo uma “utopia estética”, como nos diz Habermas. Apesar disso, nem só de utopia vive a educação estética. A própria teoria do agir comunicativo de Habermas demonstra a importância do estético como um aspecto da razão não instrumental. As formas de comunicação que podemos experimentar no “mundo da vida” não se esgotam na racionalidade técnica e, nesse sentido, a estética é uma das maneiras mais frutíferas de conceber uma educação que vise a desenvolver o sujeito integralmente:
“A razão técnica é deficitária, ela ignora a subjetividade, a justiça, a política. A estética, nesse sentido, é uma via de atenuamento desse hiato entre essa espécie de racionalidade e o mundo da vida, grosso modo, o hiato entre teoria (abstração) e prática (concretude). Assim sendo, Habermas entende que a razão humana deva sim se sobrepor, comunicativamente, à razão instrumental, impor-se sobre todo e qualquer sistema totalitário e redutor.” (ISSE: 2007, p.56)
A proposta habermasiana traz a racionalidade para o âmbito terreno, golpeando a pretensão de objetividade plena da razão instrumental. O agir comunicativo é a proposta de fazer frente ao domínio da razão instrumental expandindo o conceito de razão a toda comunicação. A estética contribui para a comunicação por ser, também, uma linguagem, com a vantagem de, como poderia dizer Schiller, ser tanto universal e abstrata quanto singular e concreta, trazendo a discussão para o “mundo da vida”.
Menos evidente, porém não menos importante e decorrente do raciocínio até agora desenvolvido, é o aspecto inclusivo da educação estética. É certo que os alunos têm suas particularidades e o trabalho do educador depende da consideração dessas idiossincrasias. O predomínio da racionalidade técnica acaba por valorizar exclusivamente o aluno lógico-matemático. Não é o caso de desvalorizar este aluno, mas de não valorizá-loexclusivamente. É preciso compreender que o processo educativo não é realizado apenas com alunos de amplas capacidades lógicas e, nesse sentido, a educação estética pode ajudar a desenvolver as potencialidades de outros discentes.
Em síntese, o Núcleo das Linguagens procura valorizar a sensação e a arte em geral como possibilidades de expansão do horizonte comunicativo e inclusivo da prática pedagógica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUARTE JÚNIOR, J.F. O sentido dos sentidos: A educação (do) sensível. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?view=vtls000211363> Acesso em 8 de maio 2013.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ISSE, R. Educação Estética: uma ponte entre Schiller e Habermas. 79 f. Tese (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro, Forense Universitária; Brasília: Ed. UnB, 1982.
SCHILLER, F. A Educação Estética dos Homens. Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2002.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. A pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 2002

[1] Para uma compreensão mais profunda da estrutura da revolução científica do século XVII, Cf. KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro, Forense Universitária; Brasília: Ed. UnB, 1982.

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